Fermentação



Quando era miúda adorava ver a minha avó a fazer as filhoses para o Natal.
Depois de amassar vigorosamente a massa, ela colocava-a num grande tabuleiro de barro para fermentar e cobria-a com um pano. Nada de tampas, apenas um leve pano.

Ela sabia que era preciso dar tempo a que a massa fermentasse, e ía pacientemente observando a massa a crescer, levantando só uma pontinha do pano, até que ela extravasasse os limites do tabuleiro.
Quando chegava a altura de fritar, ela também sabia que não devia colocar muita massa na fritadeira ao mesmo tempo. Duas ou três porções de cada vez, para as poder vigiar, para que cada uma tivesse o espaço necessário e não se colassem umas nas outras. 
Polvilhadas depois com açúcar faziam as delícias de qualquer um que as provasse. Não tenho dúvidas que o ingrediente secreto que as tornava inesquecíveis era o amor com que as fazia.
Escusado será dizer que assim que a minha avó começava a preparar a massa ficava rodeada de miúdos em pulgas por começar a comer. Lembro-me que a ansiedade de nos lambuzarmos com aquela maravilha nos levava a pressioná-la a cada passo do moroso (para nós interminável) processo: "Já está bem amassado, avó! Ainda não fermentou?? Vá lá avó, de certeza que já está bom para fritar! Põe mais na fritadeira, avó! De certeza que cabem mais! Já arrefeceram?"
Ela sentia a pressão dos gulosos impacientes. E sorria. E não fazia caso.



Olho para a humanidade assim: massa a fermentar.
E estamos (genericamente falando) numa altura muito propícia à fermentação.
Observo (em mim e nos outros) a massa a borbulhar, cada vez mais mudanças a acontecer, mais gente com a predisposição para essas mudanças, os olhos incendiados com a vontade de expandir horizontes, de questionar, de rasgar velhas crenças e hábitos.
E vejo muita pressa - incluindo a minha - em começar a comer as filhoses. 

Temos muito por onde crescer, mas a nossa necessidade de definição e afirmação leva-nos a sabotar e apressar o processo.

Vivemos na mentalidade do fazer.
E, entendendo a importância da acção, da definição de prazos e objectivos, creio que descuramos demasiado o período de fermentação.
Na vida tudo tem o seu ritmo, e tão importante quanto o movimento é a quietude; o espaço dado à respiração. Basta que penses na importância das pausas numa dança, numa melodia, num discurso, numa anedota - antes da punch line. 

Quando nos impomos prazos muito rígidos e nos obrigamos a apressar-nos para os concretizar, duas coisas podem acontecer: pomos a massa a fritar antes de tempo e estragam-se as filhoses, e não observamos a magia que é a massa a crescer.
Mal sentimos a massa a crescer um pouco já queremos começar a fazer filhoses em série. Uma e outra e outra, até termos a fritadeira tão cheia de porções de massa que já nem sabemos qual temos de virar, qual é a primeira que tem de sair, correndo o risco de se colarem umas às outras, transformando-se numa gigantesca filhós sem ponta por onde se lhe pegue. 
Isto acontece porque entendemos a fermentação como "não fazer nada", uma perda de tempo. Já amassámos a massa, sabemos que a queremos fritar, este momento entre as duas acções em que nada parece estar a acontecer gera muita ansiedade: não temos nada para fazer além de esperar e ir observando a massa a crescer, sendo que, como ela está coberta com um pano, na maior parte do tempo nem sequer vemos nada!
Esquecemo-nos que essa acção que se passa por baixo do pano que, sendo invisível, sentimos como inacção, é parte fundamental do processo. Se soubermos dar tempo ao tempo, essa mudança será bem visível, quando compararmos a massa fermentada com a que colocámos a fermentar.  
Esquecemo-nos também que enquanto a massa fermenta, podemos afastar-nos e são inúmeras as coisas que podemos fazer que em nada dependem das filhoses, incluindo não fazer absolutamente nada e oferecer-nos um momento de paz por entre a azáfama. 
Bom, se queremos comer as filhoses pelo Natal, é importante aplicarmo-nos para que fiquem prontas no Natal e não na Páscoa... 
Mas é igualmente importante, depois de fazermos a nossa parte, deixar que a massa que resultou do nosso trabalho faça também a sua, aceitando que ela já não está nas nossas mãos, não depende de nós quando ficará pronta, e que podemos ter de aguardar uma hora, duas, ou até à manhã seguinte. Claro que podemos sempre tentar acelerar o processo, pô-la em cima do aquecedor ou qualquer outra coisa... mas, na verdade, a massa ficará pronta... quando ficar. 
Como saber que estamos no tempo certo de agir? Como saber se a massa já fermentou? Se já fritou? Provavelmente a experiência ajudará a sabê-lo instintivamente. Entretanto, em caso de dúvida... vamos testando. Nada nos impede de por um pouco de massa na fritadeira e ver o que acontece.
Ceder a pressões (internas ou externas) conduz a precipitações. Não significa que corra sempre tudo bem se não nos apressarmos; isso não garante nada além da possibilidade de agirmos conscientes das nossas escolhas e aceitarmos as consequências como resultado da nossa acção. E isso, não sendo nada, é tudo. 


O mesmo se passa com objectivos muito estanques: se cobrirmos a massa com uma tampa em vez de um pano, estamos a limitar-lhe a possibilidade de crescimento ao que previamente estabelecemos, a impedi-la de se expandir livremente e, quem sabe, surpreender-nos. 

Finalmente, é ainda crucial estar aberto à possibilidade de não haver filhoses. 
Convém lembrar que neste processo, como em tudo, apenas uma (diria pequena) parte está realmente sob o nosso controle. 
É tão possível que a coisa corra bem como o é que ela corra mal, por motivos que nos transcendem, e apesar de todo o nosso empenho. 
Enquanto o seu corpo lhe permitiu, a minha avó cozinhava como ninguém. E nem todo o seu amor e as décadas de experiência impediram que, um certo Natal, as várias tentativas de filhoses acabassem em massa crua no lixo. 
Se ficarmos fixados no facto de não haver filhoses, não vamos desfrutar dos sonhos, azevias e restantes iguarias que possam estar em cima da mesa.

O amor é ingrediente fundamental em tudo o que fazemos. Até nas pausas.
A flexibilidade é vital.




Se quiseres, relaciona esta metáfora com a tua vida:

Em que fase estás, em cada área da tua vida?
Estás a garantir que amassas com amor?
Estás a respeitar o tempo de fermentação?
Enquanto esperas que uma área fermente, estás a dedicar-te a outra?
Quantas filhoses estás a tentar fritar ao mesmo tempo? Como está a correr?...
Estás a dar-lhes tempo para arrefecer e solidificar?

Provavelmente em alguma(s) área(s) da tua vida estás agora na fase da degustação.
Estás a exultar cada dentada?

Todas as fases têm um gostinho muito especial. Saboreia-os! 







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