Metamorfose


A partir daquele momento, no seu peito, bateriam dois corações. Para sempre.
Dispararam descompassados quando se encontraram e se fundiram.
Sentiu que as suas mãos eram demasiado grandes e desajeitadas para albergar tamanha fragilidade. Invadiu-o um medo petrificante, a primeira vez que lhe pegou, e pôde sentir o seu cheiro. E se te magoo? E se faço algo errado? E se não tomo as decisões certas? E se não gostares de mim? E se te perco? A magia embrulhada naquele minúsculo pedaço de pano logo o serenou - Calma... está tudo bem. Repara que já batem em uníssono. - e a agitação deu lugar a uma paz nunca antes sentida, até então inimaginável. Não, está tudo perfeito.

- Sabes, provavelmente vou fazer muitos disparates. É possível que às vezes te desiludas comigo, mas prometo-te que tentarei não o fazer. Tu nunca o conseguirás, por muito que te esforces. Sei que sentirás, em alguns momentos pelo caminho, que eu não gosto de ti - asseguro-te: será mentira. E estou certo que de vez em quando irás esbracejar de raiva por mim. Quero que saibas que não faz mal.  Mesmo que um dia ou outro sintas que não me amas, o meu amor é tão grande que chegará para os dois. Nunca largarei a tua mão. Mesmo quando tiver de te deixar cair. E acredita, os teus joelhos esfolados, farão os meus arder em carne viva. Mesmo quando te parecer que estou contra ti, estarei sempre, incondicionalmente, a fazer o meu melhor para cumprir este novo cargo que hoje assumo: ser o teu anjo da guarda. Não entendo bem o que aconteceu, que fenómeno é este, que fenómeno és tu, mas em três minutos transformaste-me. Fazes-me querer ser melhor.




Amo-te. Perdoa-me.


Não posso respirar por ti. Não posso querer viver por ti. Lamento, mas não posso. Ou já nem sei se lamento. Sei que não posso, nem pode ninguém.  
Já vivi demasiadas vezes a tua vida. Já deixei demasiadas vezes de viver a minha.
Entrego-te nas tuas mãos. Mesmo que isso me custe, te custe, e nos custe a tua vida. É uma jogada arriscada, eu sei. Mas o que temos de perceber, o que temos mesmo de conseguir perceber de uma vez por todas, é que é um risco teu; não me compete ir a jogo com as tuas cartas. Temos de o aceitar, e temos de arranjar forma de nos perdoar. Chega de bluffs.
Este meu querer, desesperado e impotente; este meu desejo de manter viva a tua vida, seja por amor, retribuição, premonição de culpas ou simplesmente por medo de te perder, não te traz de volta à vida. Só alimenta a ilusão que tu vives, enquanto vives através de mim. Já te perdi. Pior, já te perdeste.
O meu balão de oxigénio já não chega para manter duas vidas... e estou cansada de arrastar duas meias vidas. Faltam-me as forças, e (em verdade) a vontade de te forçar a querer o que eu queria que quisesses. É tempo de eu querer viver a minha vida. E é tempo de tu quereres... o que quiseres.
Desligo o botão. Corto o cordão umbilical. Não vou continuar a ser o teu suporte de vida. Não quero mais que suportes a vida à força do meu sopro. Quero que queiras viver. Quero muito que queiras viver. Mas não posso querer viver por ti.
Pérfido que te pareça, esta é a maior prova de amor que te posso dar: Liberto-te. Liberto-nos. É teu o poder de regressar a ti e a nós. Ou não. Amar-te-ei sempre.
Eu escolho viver. Com esperança que me perdoes e me ames por isso.




Amanhã volto.



Domingo nublado. O ócio aninha-se sem cerimónia, e eu anicho-me na imagem desfocada que me entra pela janela. Sonho com o sol que não chegou a nascer. Levito na neblina cor-de-rosa que adoça e suaviza tudo o que seria. Sinto saudades do que poderia ser. Morro de saudades do que teria sido - se.
Sinto falta do amanhã. Arrepiam-me os lábios que não beijei. Pesa-me o ventre nunca habitado. Dói-me o sorriso que não rasguei. Atormenta-me a perfeição quimérica latente no teu se.
Refém voluntária das promessas que todos os ses encerram, dou a última passa no cigarro, e deixo-me ir junto com a fumaça, que sai do meu corpo e se afasta de mim num sopro, indefinida, sem rumo nem rédeas. Deixo-me ir com ela, suspensa no tempo onde sobra tempo... Afinal, hoje é domingo. Amanhã por esta hora já a modorra terá feito check out, levando consigo todos os peçonhentos ses.