Pastéis de Safara



Esta história há-de acompanhar-me por toda a minha vida.
Já a partilhei com algumas pessoas, hoje apeteceu-me deixar o registo.

O meu pai era um homem guloso. Muito guloso. Nos últimos tempos da sua doença, todos os mimos que eu lhe pudesse dar... dava. Isso passava também, obviamente, por presenteá-lo com guloseimas. Entre elas, incluíam-se os deliciosos pasteis de safara, doce típico alentejano, de gila e ovo. Não são fáceis de encontrar, e também não são propriamente ao preço da chuva...
Além de guloso, o meu pai também foi sempre muito... digamos que zeloso com os gastos. Ora sempre que eu lhe levava os ditos pastéis, a conversa era a mesma:
- Oh filhota, pra que foste gastar tanto dinheiro? Não era preciso... - dizia ele com os olhos a brilhar e quase a salivar.
- Paizoca, deixa... É um miminho.
- Sim, mas não podes andar a gastar tanto em mimos. Há mimos mais baratos que eu também gosto.
- Vá, deixa isso. Não é todos os dias... Este é um miminho especial. Saboreia e não penses no resto.
A conversa era recorrente, já que felizmente os meus mimos também o eram.

Uns meses depois da partida do meu pai, extintos que estavam os meus cargos de enfermeira/assistente pessoal/secretária/motorista/handywoman e etc. e tal,  entendi que estava na hora de retomar o meu caminho, e isso passava obviamente por voltar a ter o meu espaço. - Aluguei um pequeno apartamento - o meu cantinho, há muito desejado.
Tendo de recomeçar do zero, muito há onde gastar... desde mobílias a cacarecos... tudo somado é um investimento considerável. Claro está, que nos tempos que correm, e para conseguir tudo o que precisava, montei em casa um verdadeiro Show-Room da Ikea, passo a publicidade.
Não obstante, perdi-me de amores por umas mesas de vidro extensíveis, lindíssimas, e tendo em conta que a casa não é muito grande, era a mesa perfeita para a minha sala. Escusado será dizer, que proporcionalmente à sua beleza, estava o seu preço... Era incomportável. Certo dia, entro numa loja para ver de candeeiros, e vejo uma dessas mesas. Com os pés mais simples e tal, mas muito bonita. Fui espreitar. Era menos de metade do preço das mais baratas que eu tinha encontrado. O coração disparou-me. Ainda estava com um desconto qualquer, por isso ficava mesmo com um preço fenomenal. Ainda assim, era uma soma considerável... Sou muito conscienciosa das minhas contas (sem dúvida por influência do meu pai), e aquilo para mim era sinal de alguma loucura... mas era mesmo o que eu queria! Gastei o soalho da loja, absorvida pelos discursos do anjinho e do diabinho confortavelmente instalados cada um em seu ombro, a promover um debate cada vez menos esclarecedor... Lá me decidi a comprar a mesa, como quem tira um penso rápido de puxão, pra não doer muito.
Claro que mal saí da loja - depois de passar o cartão na diabólica máquina que nos saca os tustos à laia de anestesia, para só sentirmos bem o efeito da acção na próxima consulta de saldos - comecei a questionar a minha compra...
Vinha eu perdida nos meus pensamentos - Ah! neste momento é relevante partilhar convosco que conduzo depressa. Bastante depressa. Tipo "bem fora dos limites-depressa". -  Vinha eu então consumida pela culpa e perdida nos meus pensamentos pela Ponte Vasco da Gama (epicentro das minhas actividades mentais e paranormais), "Ai meu Deus, tanto dinheiro por uma mesa... Ainda me falta comprar tanta coisa... Que disparate Maria Teresa! Ai paizoca, o que é que tu me dirias se aqui estivesses?? Eu sei que foi um capricho paizoca... Eu não precisava daquela mesa... Mas era uma excelente oportunidade. Não resisti..." quando passa por mim uma carrinha comercial (coisa estranha, já que eu conduzo realmente depressa!). Ultrapassa-me e coloca-se à minha frente. Surpreendida, olho melhor a super-carrinha branca, e os meus olhos batem num simples e modesto logo: "Pasteis de Safara".
Pensem o que quiserem... Facto é que não é vulgar eu ser ultrapassada por carrinhas comerciais. Facto é que vejo muitos carros com logos da PT, EDP, Prossegur, Molly Maid, transportadoras várias... mas nunca tinha visto, nem nunca mais tornei a ver uma carrinha com a inscrição "Pasteis de Safara".
Pensem pois o que quiserem... Eu sei que naquele dia, o meu pai me passou a mão na cabeça e me disse:
Deixa lá filhota... é um miminho.

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Com um agradecimento muito especial ao meu pai. Sou eternamente grata por todos os ensinamentos. Sou eternamente grata pelas vezes que me picavas em miúda, pela amizade que desenvolvemos à medida que eu crescia e nos compreendíamos melhor, por teres tido orgulho na mulher em que me transformei, pela cumplicidade imensa que criámos juntos, por te ter ao meu lado como o meu pilar, o meu bom-senso, o meu pé no chão, e acima de tudo, por ter sido a tua menina e por ter tido o privilégio de te retribuir em vida, cuidando e mimando-te tanto quanto me foi possível, meu menino grande.

4 comentários:

  1. Obrigado pela partilha.

    Sou filho de uma safarenha e aprendi a gostar dessa iguaria, pela certa, como o seu pai gostava. Eu tirava as sucessivas camadas ( e ainda tiro ) do pastel como se de um pequeno livro se tratasse e assim saboreava cada página, como agora saboreei esta que aquí partilha connosco. Deixo a sugestão de lhe juntar mais e mais páginas até fazer o seu livro/pastel que o seu pai tanto gostava. Se em cada página nascer uma vivencia das muitas que fizeram a vossa vida em conjunto, irá nascer o vosso delicioso pastel de safara . Obrigado Teresa. José Condeça

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    1. Obrigada pelas suas palavras José.
      É sem dúvida um projecto cada vez mais presente, esse de cozinhar o meu livro/pastel. Incentivos como este que aqui me deixa, só reforçam a vontade de enveredar por essas deliciosas experiências.
      Muito grata

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  2. Este comentário foi removido por um administrador do blogue.

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    1. Por lapso apaguei este teu comentário. :-(
      Deixo-o aqui, já que o tinha no email:

      "Que maravilha!
      Que nobreza de alma!
      Que mimo eterno! "

      Obrigada, meu querido.

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